Henri T. Lautrec

Henri T. Lautrec
Suzanne Valadon

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Ela, de vida curta

Ela não tinha fome nem anseios. Sua alegria era doses na veia. Aos 13 foi colocada debaixo de um caminhoneiro como pagamento da morte de alguém e desde então seguiu seu caminho infeliz.

Ela não tinha mais família nem conceitos. Mas, fumava seu cigarro enquanto analisava o pôr-do-sol.

Embriagada pela cerveja barata do bar, pelos hálitos torpes dos bêbados caídos, ela também caía. Caía nas camas sem lençóis, nos corpos enlaçados de suor e luxúria e nas calçadas, às vezes... quando a valentia ultrapassava os limites da dignidade.

Não passaria dos 22. Ela sabia. Muito magra e pálida como construções pastéis. Cabelos longos em trancinhas, uma feição de menina que agradava os homens. Não beijava na boca e seu anúncio estava colado em telefones públicos.

Ela não era pública. Do seu salário devia 30 por cento para o velho de barbas brancas e barriga gelatinosa. Ele era asqueroso e sugava esse dinheiro como também seus seios.

Vivia com outras, onde dormia de vez em nunca, tomava banho e lavava as próprias calcinhas. Amigas eram suas meias não furadas, os sapatos brilhantes que não doloriam os pés e a maquiagem pesada, que pesava mesmo era na existência.

A noite era sua alforria. Os lábios contorciam em sorrisos, as pernas tremiam e a respiração se refazia. Vendia seu sexo em troca de mais. Se parava de pensar sobre, a agulha penetrava-lhe, como uma imensa dose de apatia e bem-estar.

Se o vento lhe provocasse a nudez, arrumava a saia, porque sabia que a simulação era mais provocativa e sensual. Ela simulava sua vida, como um sonho e permanecia nele assim, sempre a alcançá-lo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Parábola do Velho do Tempo

“Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha de estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia no mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

(...)

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica,
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
“Se é que ele as criou, do que duvido” –
“Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.”
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa”

Oitavo poema do Guardador de Rebanhos, do Alberto Caeiro,
O mestre que me ensinou o quão é importante guardar o rebanho, os pensamentos que pernoitam nossas mentes


Parábola do Velho do Tempo

Certa vez um velho senhor sentou ao meu lado, num canto do banco daquela praça e me disse com aqueles olhos exprimidos pelo Tempo:

Vai-te. Levanta-te desta madeira que a chuva carcome. Algum dia o Sol irá raiar e vai te chamar para senti-lo e em vez de levantar para vê-lo, você estará sentado.

Vai-te! Levanta que tua hora chegou. É tempo de erguer a cabeça e movimentar as pernas, usar as mãos para nadar, porque chove tanto que a água inundou teu caminho. Você nada, nada, quase se afoga e no final da linha, no horizonte, tem um barco. Cada braçada tua é um galinho de madeira que foi se colando. Nade bastante porque lá no final teu barco estará pronto e só assim você poderá retornar.

Vai-te! O que esperas? Esperas que a Lua caia sobre tua cabeça? O homem anda construindo escadas metafóricas para chegar a Lua. E cadê ela? Ela está te olhando e analisando teus passos... Cuidado com cada degrau. Não suba nem desça sem pensar antes, você pode tropeçar e cair até o primeiro degrau e terá que subir tudo de novo. E se cair?

Vai-te! Levant-te que cada caída é uma caída diferente e cada subida é uma subida diferente. Não te digo o óbvio, só os profetas enxergam o óbvio. Digo-te para levantar e não desistir. Você pode pensar em desistir, mas não por muito tempo. Você tem que prosseguir teu nado, senão te afogas pela própria vaidade.

Vai-te.

E o velho pegou seu cajado e bateu de leve na minha cabeça. Neste momento um eclipse solar aconteceu e chuva caiu na minha cabeça. Não era uma nuvenzinha negra não... Era a vida.